Este espaço, quilombo eletrônico é uma Arma.
Uma berro, aos berros para chamar a atenção de nossa inércia cotidiana.
Aqui , desfilaremos textos, sons e imagens que nos façam remexer o espírito.
Aqui não é palco de luta. Palco de luta são as ruas.
Mas aqui poderemos dar corda às nossas frustrações. Poderemos falar, cortar esse sufoco que nos arrebenta.
Na boa Dom?
Estamos tão controlados e controladas,
Que essa matança em massa ai fora não nos movimenta pra nada.
Abrem-se cadeias na Bahia e todo mundo em silencio fazendo o relatório do financiamento.
Morrem meninos e meninas num padrão vil de genocídio e a gente faz seminário fingindo que não é com a gente.
De boa.
Aqui é pra se falar na lata!
Aos berros!
O que se quer....

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

voto negro

Voto em negro até para síndico de prédio
Que se arranjem com seus negros bons

Volto a escrever para acalmar minha alma. Para que serve a escrita nesses tempos duros de morte das idéias? Maca do Blacktude diria: “É para nos fazermos juntos.” Eu concordo, as negras e os negros têm que seguir juntos nessa empreitada de construir a liberdade.
Essa liberdade incompleta não pode nos satisfazer. Minha alma rompe o mato e faço “trocentos” quilombos quando escrevo. Quilombo não se faz como capacho, quilombo se faz na marra, arrancando sangue da alma todo dia. Quilombo não se faz com uma simpatia subserviente de certos “ativistas” com seus dentes abertos toda vez que a casa branca solicita.
Em tempos de eleições um fenômeno toma as cidades: são vários fenômenos. Eu me concentrarei em um destes muitos para a nossa reflexão. Refiro-me a essa elasticidade das convicções, uma tolerância obesa com os insultos que nos são lançados, uma malemolência pragmática com os inimigos, uma frouxidão militante. Não entramos em eleições para levantar votos apenas, entramos para afirmar um projeto, para disputá-lo com quem julgamos minimamente aliados, ou no máximo parceiros possíveis para uma aliança em vista da construção de um pais melhor. Queremos uma nova Bahia, por isso não esperem de nós anarquismo de ultima hora , nem “hipismo afro-descendente”. Nós disputamos projetos .
Queremos poder para os negros e negras que fizeram esse país com sangue e vidas desgastadas. Se queremos poder para os negros , votamos em negros em todas as instâncias possíveis. Eu voto em negros e negras até para síndico de prédio.
• Porque os negros e negras vieram para esse território seqüestrados
• Porque o racismo nos colocou e continua colocando em desvantagem diante dos brancos e isso precisa ser corrigido
• Por que nossa pauta principal não pode ser apêndice da pauta dos outros
• Porque a cor da pele, ao contrário do que pretendem nos convencer mais de 30 anos depois do Ilê Aiyê e MNU afirmarem nossa consciência racial, pode significar vida ou morte em dada circunstância.
Quando uma líder Negra, tarimbada nas administrações de esquerda e de direita diz em pleno pulmões que a cor da pele ( tinta forte ou tinta fraca) não importa numa eleição, a levanta aplausos de uma platéia de maioria negra , comete um desserviço: o assassinato de idéias caras a nossa luta , uma sacanagem.
Voto em pretos, e escolho o melhor projeto. Por isso Sergio São Bernardo, 13310, um advogado socialista que entende que um projeto pan-africanista de poder é possível, um ex-camelô , lutador de boxe, líder estudantil, professor de direito e filosofia do direito , que reuniu o que há de melhor do movimento negro baiano em torno de sua candidatura. Que pisa no mato , como pisa no barro, como pisa no asfalto com a mesma majestade política que herdamos de Xangô ( de quem é Filho ) e iniciado como Ogã de Oyá .
Por isso voto em Valmir Assunção 1310, natural de nova alegria, pros lados de Itamarajú. Homem negro que partiu para São Paulo adolescente para tentar a sorte e ajudar a família. Homem negro que fundou o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que levantou a esperança do povo negro e pobre do Sertão, que atuou na Secretaria de Desenvolvimento Social do Governo e Combateu a Pobreza, que é contra grades e cercas e que repete a plenos pulmões que foi ganho para a questão racial , ou seja: nós os negros temos um projeto para o Brasil .
Por isso escrevo aqui: para me expor, expor minhas idéias e debater. Expor minha opção política pelo voto racial, comprometido com meus discursos e história na militância. Voto racial porque o racismo é a contradição principal da sociedade brasileira e precisa ser corrigido.


Hamilton Borges Walê
hamilton_africano@yahoo.com.br

quinta-feira, 13 de maio de 2010

O 13 DE MAIO E A CAMPANHA REAJA UM SOCO NA REPUBLICA QUE NÃO CHEGA

Pela passagem dos cinco anos da Campanha Reaja na Bahia !!!

Tenho pensado em porque o 13 de maio ainda é amplamente comemorado em todo o país. Agora, por ocasião do aniversário da Campanha Reaja, farei um breve comentário de um assunto que merece ser tematizado. Vlamyra Albuquerque aborda isso em seu livro, “O Jogo da Dissimulação”.
O 13 de maio, tendo sido fruto de uma pressão de republicanos e uma sobrevida para os monarquistas, seria lembrado como a glória histórica dos dois sistemas. Não era uma festa para negros comemorarem, porque a comemoração é uma auto-afirmação de seu mundo e isto, os monarquistas pouco compreendiam e os republicanos, bulhufas. Não era para existir Congadas, Bembé do Mercado e nem Reisados.
A república queria mesmo era ungir um mundo de iguais sem rostos da Republica que anunciava uma agenda emancipatória. No final do império existia uma Guarda Negra, formada por escravos libertos que entendia a importância de um terceiro reinado para a monarquia.Silva jardim, um famoso republicano que fora duramente combatido publicamente por dezenas de membros da Guarda Negra. Um prenúncio de uma republica eurocêntrica que tinha medo dos pretos que gostava da princesa e que tinha desconfiança dos brancos ricos materialistas. Hoje sentimos as faltas históricas de uma decadente Monarquia e de uma República não realizada e que nem por isso deve ser maniqueistamente tratada.
A Campanha Reaja continua confrontando modelos de Estado que não realiza a liberdade, a igualdade, nem a fraternidade para todos.Também está confrontando as alternativas dos brancos ricos cristãos da nova esquerda que também não realizou o socialismo humanitário.Precisamos compreender que tivemos que superar o ideário monarquista que não realizou a igualdade material que nos livraria do jugo histórico de uma saga escravocrata. Mas é bem verdade que os senhores do café e do leite eram republicanos e não gostavam de pretos.
A Campanha Reaja sobrevive no limbo dos modelos de Estado e regimes de governo que não realiza a igualdade entre pessoas. A Campanha Reaja continua a expor os pretos contra mundos que se disputam e querem negros como troféus!
A Campanha não era para perdurar. Não era para continuar existindo para alguns republicanos e muito menos para alguns monarquistas da atualidade.

Viva o Reaja Viva!

Sérgio São Bernardo
SERGIO SAO BERNARDO.BLOGSPOT.COM
WWW.PEDRADERAIO.ORG.BR

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Reaja Continua Lutando Contra o Racismo e Pela Vida

Os Assassinos Seguem Impunes com seus Capachos Amaciando seu Tombo Certo

Nos anos 70, sob o rigor fascista de uma ditadura, instituímos um método de luta contra o racismo no país que demoliu definitivamente um modo de nos olhar em viés. Afirmamos nossa negrura, nossa pretidão, nossas instituições políticas religiosas , erigimos nossos heróis, impomos nossa história e definitivamente chamamos o país a revisar sua noção de identidade. Não pedimos nada, exigimos, com o pescoço em riste o que era nosso por direito histórico. Levantamos!

“Chega de tudo pela Metade basta de tudo pelo meio
Agora ou vai ou racha , queremos tudo e inteiro”(Abdias do Nascimento)

A Democracia Racial como exemplo de convivência pacífica entre os vários povos que construíram o país desabou sob os pés da nação. Nós fomos a dinamite desse evento definitivo para nossa democracia falha, incompleta e moribunda:

“ Somos os Coveiros da Democracia Racial” (Hamilton Borges Walê)

Dissemos que queríamos um novo modelo de nação, um outro país, sem subordinação de um seguimento racial sobre outro, para fora do capitalismo, com respeito as civilizações que aqui chegaram. Apontamos uma nova ética, uma estética política desfilando de cabelo duro, contra as instituições hegemônicas que nos ignoram como sujeitos políticos.Vencemos os anos 70.

“Reaja a Violência Racial” (Palavra de ordem do Movimento Negro Unificado)

A escola em que fui formado acredita que o combate ao racismo e ao neo-colonialismo é a única opção que temos contra o que nos destrói. Fora disso não nos resta nada. O racismo estrutura todas as relações no Estado Brasileiro. Não somos sócios desse pacto branco assinado com nosso sangue nos canaviais e nas lavouras , nas minas de ouro e diamantes , nos pastos de boi , nas grandes roças do latifúndio de café e uva.

Chegamos aqui acorrentados e acorrentadas como prisioneiros de uma guerra que não teve fim e da qual nossas vidas eram o combustível.

O contrato republicano de disputar por dentro das instituições é tão utopia quanto nosso desejo de criar alternativas de poder negro/indígena /feminino. Sonhemos o nosso próprio sonho construído sobre nossos próprios referenciais

A Campanha Reaja ou Será Morta , Reaja ou Será Morto nasceu no dia 12 de Maio de 2005 , ocupando por mais de 08 horas, madrugada a fora, a porta da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia. Rompemos o silêncio sobre as mortes de pretos e pretas na Bahia.Politizamos nossas mortes!Internacionalizamos nosso martírio coletivo.Instituímos um método radical de defender a vida. Desafiamos os poderosos do palácio de Ondina em duas gestões semelhantes de segurança pública baseadas em nossa eliminação. Pautamos o debate por todo o Brasil.

Sem concessão , sem prêmios , sem comendas,sem massagens e sendo criminalizados operamos o regaste de luta contra o racismo em oposição a prática encabulada de promover uma igualdade impossível num regime desigual.

Às mães que perderam seus filhos pela lógica racista de segurança nos últimos cinco anos - afirmamos que continuamos atentos e atentas e que nossa voz não se cala diante do terror - contem conosco.

Aos Prisioneiros e prisioneiros, muitos militantes dessa campanha do contra, nosso compromisso de não permitir que suas vidas sejam estudadas como ratos de laboratórios na manipulação pseudo-científica de sua desgraça e/ou nos projetos inócuos que geram lucro e crédito universitário e nada mais. Afirmamos que continuaremos firmes na luta pela abolição das penas, pela demolição das cadeias, pelo enfrentamento a esse modelo de justiça criminal seletivo que lucra com nossa desgraça

Estamos no século XXI sob o rigor fascista de uma ditadura racista que nos elimina em massa, se dizendo democrática de direito, estamos combatendo o genocídio, o racismo e a traição entre alguns dos nossos

Somos isso!

Campanha Reaja ou será Morta , reaja ou será Morto
Simplesmente uma Campanha
Hamilton Borges Walê

quinta-feira, 6 de maio de 2010

DO ALTO DO ESCADÃO LÁ DE CASA EU OBSERVO O MUNDO

Abri a janela. Calor do carai. Já ta anunciada minha praga, hoje tem enterro, se pensar, pela barulheira que fizeram aqui fora ontem, fizeram Indio de bife batido. Só de coturno pisando a cabeça do muleque...vixe
“ai, ai minha mãe” ouvia a voz do menino
“agora tem mãe? Mãe uma porra, ou dá a “boca de fumo” ou "vai pra gaveta”
“Que boca moço, sou estudante”
“Cala boca caralho, cê vai istudá é com o diabo nos quinto dos inferno” o Estado fala forte nessas horas
Eu só ouvia, deitado no meu coxão no chão da sala de meu barraco, mandei a nega ficar na cozinha abaixada , luz apagada, não posso descrever a cara dos policia, mas pela voz os cara saíram de uma filme sinistro desses que passa de madrugada sobre guerra.
Posso descrever índio,ai posso. Muleque alto , 15 anos com cara de pateta mas com uma inteligência incomum nessas bandas, daqueles muleques adianto que cai no encanto dos bandidos.
“Índio pegue uma carteira da Charlton ali em seu Favinha ” fala um malaco veio que eu não sei o nome porque nun sô caguete
“Demoro”
respondia Índio já no caminho da função. Lá ia o muleque correndo com uma nota de 20 pratas na mão, segurando a bermuda folgada com outra para em poucos minutos entregar a mercadoria ao destino e pegar sua gorjeta. Era assim e daí era o dia todo, comprar um frango assado para depois da larica dos parceiro, dar um recado a mãe de um que não volta em casa hoje, buscar a irmã de outro na escola, carregar a compra de uma mãe em apuros e fumar muita maconha de bombeira na lage.
Tinha um romance secreto na quebrada, com o Zizinho, filho de Zé do galo, pegou o muleque vestindo a calcinha da irmã no natal, tirou uma foto do celular e desde então tem extorquido uns carinhos do Zizinho seu antigo colega de primário, Indio nunca saiu do primário, Zizinho sim, talvez foi nos livros que apreendeu a fazer aquilo com a língua em sua orelha...bagulho louco. Quando acabavam no encontro secreto, ele botava uma cara de zangado...tipo sujeito homem, mas adorava aqueles amaços e Zizinho...suspirava dia e noite por seu amante mas carinhoso e apaixonado. Isso quem me disse foi o próprio Zizinho, no enterro, tava de preto e chorava muito. Perdeu seu amor pra sempre e prematuramente.
A policia todo dia entra aqui procurando a boca, dá uns paus nuns muleque, toma cerveja e wuisk em João da Goela , lá pelas tantas vai na boca de fumo da uma tapas numa boa maconha com os traficantes e já era.
Mas nesse dia , não foi assim não, o barato saiu do controle, foram tantas bordoadas no pobre Índio que ele ficou esticado pelo escadão, sem socorro, sagrando pacas e gemendo baixo, agonizando mesmo enquanto os PMs decidiam o que fazer.
“Deixa ai rapa é vagabundo mermo”
“É melhor nós dá socorro, leva no HGE, diz que encontramo ele assim, que foi briga de droga se a imprensa inguli todo mundo ingole”
“Mas tem esses cara do Movimento Negro fazendo zuada por qualquer arranhão que a gente dê em malandro, vão querer investigar e ai suja”
“Esses ai o Governador cuida”
“Ta bom então, vamo fumar um que eu já to é bolado, e sua filha, passou no vestibular?”
E os caras saíram conversando, numa boa enquanto que o corpo de India ficou ali, no frio da noite, a alma evaporando a agonia entrando por nossos barracos ... a vida levada desse jeito.
......................
Acordei cedo apesar da longa noite que tive, peguei meu melhor sapato, a melhor calça e uma camisa preta que a tempos não uso
Fiz o que tinha que fazer em casa e fui na barbearia de Dorinho saber das novidades da morte de Índio.
“ Morreu só de pancada, o sargento era quem mais batia no menino
Mas todo mundo deu sua bordoada”
“Agora pra que ele foi andar com ladrão”
fala seu Atenor com sotaque de gente de ilhéus,
“quem com porcos se mistura , farelo comi”
“Ou comi capim pela raiz “
Fiz minha barba calado e calado fiquei até me aprontar pra ir ao enterro.
Sai na porta, o muleque grita
“Bora seu Alfredo”
O menino veste roupa larga e sandálias dessas de propaganda de televisão
“o enterro é as cinco, nas Quintas dos Lázaros vai ter um ônibus pra levara a gente , quem deu foi um Vereador’.
É ano de eleição, vai ter um monte de sangue suga em cima do corpo do menino, vão roer a carcaça antes dos vermes. Vermes

Hamilton Borges Walê

terça-feira, 27 de abril de 2010

ARMAGEDOM


É isso. O Curuzu é uma favela abandonada pelo governo baiano preocupado em batizar tudo com o nome de certo deputado morto, o filho de um tal senador fascista.
Curuzu de becos estreitos que ligam à ruas de baixo à Santa Mônica e aos frades. O Curuzu fica no bairro mais negro do Brasil. O Bairro da Liberdade. Não a liberdade de São Paulo, dos japoneses que operam sua própria economia e gerenciam seus próprios bancos. Ali até atendente de banco tem olho azul.
No Curuzu falta asfalto pelos lados da avenida cariri e o esgoto da rua Nadir de Jesus ainda esta a céu aberto, a escola é capenga, o lixo anda espalhado. Ali, onde fica o primeiro bloco afro do Brasil. Onde eu nasci.
O Curuzu é o meu jardim do Éden, onde meu umbigo fertiliza a terra. Onde a ginga de um preto rebrilha uma força indizível, uma mágica estupenda sob o sol.
Eu nasci de parto natural, minha avó me aparou e cortou rapidamente o cordão umbilical que estava enlaçado em meu pescoço.
Diz minha velha tia, Dona Antonieta, que eu chorei na barriga, por isso saberei o dia de minha morte.
Por precaução, meu umbigo foi enterrado num pé de mangueira lá no meu quintal, onde hoje fica a oficina, ao pé da ladeira, na baixada mesmo.
Lembro dos candomblés de Dona Roxa que nos oferecia mungunzá quente e história de gente morta, visagens andavam pela roça do maluco assombrando o povo.
Meu amigo Gabriel disse-me certa vez, que assombração mesmo era quando em noites de lua-cheia o maluco virava lobisomem e vagava pela mata, perto da ladeira do cavalo morto.
Lembro do Exu da discoteca de Macário que nos seguia voando dia de sexta feira se não oferecêssemos uma garrafa de cachaça ou uma vela preta...Curuzú era encantado.
Fiquei muitos anos sem andar no Curuzu, depois de muitas confusões pelos becos da rua progressista; de pular o muro do Colégio Celina Pinho para roubar merenda, pão, presunto e Nescau – eu finado Carroça e finado Hipólito que hoje é diácono da Assembléia de Deus. Corríamos de seu Anacleto que nos pegava pela orelha ao mando de Minha avó que gritava:

“Deus lhe dê força nos braços Seu Flô, antes você bater do que a policia”

Éramos uma família extensa, todo mundo cuidava de todo mundo.
Fiquei anos sem andar no meu bairro, rodei por Salvador, fui descobrir minha cidade em detalhes, muitos distantes dos dramas lá da rua, fui vendo, os olhos caídos das mulheres da montanha, antigo bordel que rivalizava com as prostituas do pelourinho, fui satisfazer-me com as cantigas dos blocos dos índios na ladeira da Praça, meu preferido era o Comanche do Pelô com suas sensuais travestis, entre elas a linda Carlete que tinha sido sargento da policia e ali ostentava fartos seios oferecidos juntos a uma rica feijoada para quem entrasse nos seu castelo como convidado.
Passava pelo terreiro e dava a benção ao mestre Caiçara com sua bengala talhada e uma vida entregue a capoeira e a briga de rua.
Ia para a benção de São Francisco ver aqueles pretos elegantes com pastas na mão distribuindo panfletos. Eu já circulava pela boemia que ia cedendo espaço para outros tempos. Novos tempos.
Deixei com minha Avó a responsabilidade com os destinos de meus antigos parceiros.
Vovó faz responsos para Santo Antonio, reza de ventre e espinhelas caídas.
Hoje no Curuzu o que vejo é a dor das mães que doaram suas vidas pelos filhos, como dona Marileusa que em cinco anos enterrou três filhos. Beto foi morto pela policia na Pero Vaz, antigo Corta Braço, não tinha culpa nenhuma o pobre Beto. Os rapazes da Rua do Céu assaltaram a loja de roupas de seu Anastácio, deram um cassete no velho que tinha um filho na policia do Exercito e desceram em fuga para o Pero Vaz. Beto fumava um baseado no Beco das Gordinhas, a policia chegou atirando, um tiro atingiu em cheio o coração do rapaz, ninguém foi punido.
No enterro, Dona Marileusa não derramou uma lagrima sequer, ali começará seu calvário.

“ Se é a vontade de deus, eu me conformo”

E se conformou no enterro de Ari, de César e de Marcos. Todos envolvidos com o jogo do bicho, foram fuzilados em pleno dia na porta da casa de Dona Marileusa que em silencio os acompanhou até uma cova sinistra nas Quintas dos Lázaros. Cemitério bem servido de corpos pretos mortos no Curuzu.
Hoje eu vejo a tristeza dos jovens entre os de minha geração, bêbados, drogados, largados, esquecidos, sambando como almas penadas o mais novo sucesso da Bahia. Alguma letra fácil sobre aquela melodia bumbum- fálica que nada representa a realidade que atravessa os becos estreitos de onde vi, por muitos anos, parceiros tombarem mortos por causas fúteis como a perda de uma namorada ou uma aposta não cumprida sobre o resultado do jogo entre Bahia e o Vitória. O valor da vida? Uma garrafa de refrigerante quase sempre mal conservada na barraquinha do Chico, aquele que manca exageradamente por causa de uma bala perdida que atingiu sua perna num tiroteio na Rua São João. Para variar, Chico não tinha nada que ver com o peixe.
Capote e Cinzenano trocaram tiros no dia da copa de 1986. O Brasil Perdeu para Argentina, Cinzenano que tinha organizado uma farra com cerveja e feijoada, maconha e tira gosto para comemorar a vitória do Brasil ficou furioso e saiu atirando para o alto, um dos disparos quase atinge Adelaide, amante de Capote, linda negra de corpo de sereia, um linda mulher de olhos grandes e lábios macios com um batom vermelho comprado numa revista de cosméticos e roupas sensuais, uma linda saia jeans apertada atiçando a gula de quem se atrevesse a olha-la.

“uma freteira discarada, mulé de ladrão que gosta de comê home dosotro.”

(...) Dizia Alzira do Feijão, recalcando seu amor por Capote , seu antigo amante.

“ Ele me tirou de casa, é meu devedor”

Dizia quando tomava uma pingas no bar de Risadinha, Alzira tinha seus encantos, mas a decepção amorosa com Capote a tinha deixado cada vez mais largada.

Adelaide era feita de santo em Dona Edelzuita de Oxossi, uma exuberante mulher, dava seus dotes de amante ao malandro Capote, que em troca a enchia de presentes e mimos. Perfumes, roupas, sandália, correntes de micheline, anéis, brincos tudo banhado a ouro. Adelaide brilhava, reluzia, punha as mais belas saias para fazer rodas no candomblé todo dia oito de dezembro quando dava comida para Oxum.

Capote era o comandante da gestão do Curuzu, o cão chupando manga. Tinha uma beleza natural de quem comanda, com seu porte de leão, sua voz que ecoava nas peladas de sábado, o baba. Era um herói antropológico, querido por todos.
Desfilava com seus relógios, pulseiras de prata, e armas de grosso calibre, ele e sua turma. Brasinha, Negreiro, Professor e Miguel pareciam cavaleiros medievais em constante cruzada.
Quando traziam os despojos da guerra era uma festa na comunidade. Sobretudo para os meninos que tomavam muito refrigerante de graça.

No exato instante que Cinzenano disparou os tiros para o ar, Capote estava sentado na sacada da casa de seu Valzinho, com seu olhar de lince via tudo. Uma questão de segurança, de sobrevivência. Percebeu quando Adelaide assustada, quase desmaia pensando que ia ser atingida.

Capote foi tirar o desaforo.

“ Ô fulano, Fila da puta, cê quase mata minha mulher”

Gritou do alto de sua guarita, com a mão num revolver calibre trinta e oito, cabo de madrepérola, preto como betume, (a mesma sonoridade do riso de satanás cuspindo fogo). Engatilhou, parou alguns segundos, esperando as desculpas do parceiro de goles e golpes .... silêncio, a desculpa não veio... Pelo contrario. Cinzenano olhou em fúria, tragou a ponta de um cigarro sem filtro, puxou uma pistola sete meia cinco do bolso da blusa de frio em pleno sol de Salvador e atirou

“ Vai se fudê porra”

E corria como uma pantera na mata, ali era a selva, o habitat de Cinzenano e ele estava como queria, em combate, pronto para devorar a presa, conquistar um território, uivar como vencedor da peleja.

Capote, quase sentia a bala roçar sua orelha, pulou da sacada como um anjo apocalíptico em seu êxtase armagedonico, parecia o fim de Cinzenano, a besta-fera que o sétimo anjo iria sujeitar. Tiros, muitos tiros.

A multidão corria assustada, os curiosos paravam para ver. Uma das balas atingiu a perna de Chico-da-Barraca que sangrava e chorava menos por dor, que por medo, um medo desgraçado

“Um frouxo esse rapaz, ponto puta, que fica de chiada”

(...) falava seu Carlos Telles, velho boêmio, dono do serviço de alto falantes. Tirado a valentão. Um tocador de bandolim de valor. Meu velho pai.
O tiroteio reiniciou, a esta altura o jogo da copa era secundário, Chico foi posto para dentro da venda de Risadinha. Os desafetos cessaram fogo. Capote falou manso a Cinzenano.
“ ta vendo ai vacilão, se é a vera eu te mato”

Abraçou o amigo

“Fica atirando a toa, assustando minha nega, e se você mata ela? Pague uma cerveja ai vá”

Falava ofegante guardando as duas armas na blusa. Cinzenano pegou uma cerveja no bar e ofereceu ao amigo matador

“Porra cê quase me levou véi”

Falou limpando o sangue de Chico do chão com uma talagada de cerveja oferecida ao santo como de praxe. No caso dele era boiadeiro seu protetor.
Chico foi esquecido, subiu à pé a ladeira do Curuzu, com poucos amigos, até o posto de saúde para tomar seu socorro e seu antibiótico.
A bela Adelaide de sua janela dava umas piscadas descaradas e mostrava a língua para Cizenano que tentava disfarçar a traição com tapas nas costas de Capote. Que só pensava agora em se preparar par ir ao ensaio do Ilê. Mesmo com a derrota do Brasil ia ter as cantigas de Buziga alegrando as cabeças.
O Brasil foi desclassificado, repetiram-se os tiros pela madrugada, Chico ficou definitivamente manco. Ninguém sabe que revolver o atingiu, e se soubesse não falariam. Lei é lei .
Anos mais tarde encontrei Cinzenano. Bêbado, magro, todo sujo, dançando essas musicas da moda em frente a quitanda do Chico.
Perguntei por Capote. Ele parou, fixou-me, procurou um revolver imaginário, talvez achando que aquilo levantaria a moral em minha presença. Com uma lata de crack na mão e os olhos soltos na passado ele me respondeu

“ Ta morto, foi pra Califórnia, se fudeu. O irmão de Adelaide matou ele na crocodilagem, deu uma facada nas costas”

Coçando muito o corpo e a cabeça, Cizenano mudou de assunto

“ Me dê um real ai Almir “

Eu fingi que não escutei, sai batido, trôpego, melancólico.

Capote não tem nome em aeroporto, provavelmente nem em Lapide

Hamilton Borges Walê

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Poema

Acordei com aquele peso nos olhos, uma mistura de chuva e hemorragia destilada. O gosto de aço na boca.
Na língua presa poucas palavras...palavras com barro, secas. Palavras do sertão sem chuva.
Nenhuma dor que não conheça, mas uma melancolia nova toda cravada em pregos palestinos desses que fizeram agonizar o profeta.
Tenho um prazer secreto aos domingos, destilo seriados tristes pela manhã e de uma janela observo a guerra, Lá fora a praga estoura ... a Rádio Sociedade da Bahia contou 23 mortos entre IAPI e Engenho Velho de Brotas. Tomei cerveja até 1.15 da manhã no mesmo bar em que tombaram aquele menino fino e elegante que passeava em suas roupas de marca.
Segunda feira sua mãe estará no IML recolhendo o corpo ...eu também, já me dispus e deixei o telefone... Meu ofício.
Poesia se tornou um adorno dessa dor que me traga.
Que Landê me perdoe... Landê é um mago com seus versos fartos de esperança... um mandingueiro.
As gavetas que abro agora carregam corpos, não canetas, corpos putrefatos e deformados eles revelam uma nódoa da cidade.
A guerra já etiquetou suas vítimas é todo mundo parecido comigo e, suas mães são as únicas a pronunciar algo para que se pare a matança.
Os sociólogos se repetem, os direitos humanos não se importam... sobram os poetas que já foram convocados pelo povo das Quartinhas do Aruá...
Amanhã estarei com meus parabéluns arrastando corpos pelas ruas.
Esse desespero que sinto, que contém a expressão de versos acumulados, versos para a dama que parte, para a musa que olha pelo vidro embaçado dos meus olhos meu corpo envelhecendo sem respostas.
Em cada passo que dou sobre o mundo vou construindo uma prosa de areia e vidro temperado sei que estou condenado e não me importo, suporto a sentença ou o que quer que seja, contanto que não me furtem a tinta, o papel e essa mania de levantar quando o tombo me relega à solidão.
Existe um deus da rua que sorri quando cruzo uma esquina, que me consola, me inspira e me ajuda a suportar... mas agora não sei como faço, é melhor me recolher tranqüilo sem uma palavra, sem desperdício, sem vício... calado


Hamilton Borges Walê
Poeta Maloqueiro
Antipalatável
Abril de 2008

Os 7 pecados Capitais – na Segurança Pública da Bahia

Mais um jovem com sonhos e um belo futuro abatido em Salvador. Dessa vez na comunidade de São Cristóvão, conhecida como Planeta dos Macacos não por acaso, mas pelo seu contingente populacional negro. Os negros são mortos como insetos e a cada feriado ou final de semana as estatísticas parecem que nos desafiam a alguma ação. Parece que são os números que nos cobram.Temos tabulado tantos corpos que já perdemos as contas. A mãe de Diego de Jesus Sampaio, 17 anos, nos recebeu em sua casa. Reuniu as forças que podia e nos pediu justiça, para que lutemos, para que outra mãe não chore como ela. Atravessamos a cidade em meio a uma chuva torrencial, pouco preocupados com a epidemia de dengue que nos ameaça tanto quanto a violência, saltamos os buracos e os esgotos a céu aberto, tínhamos que cumprir uma missão quase inútil dada a gravidade dessa outra epidemia que nos assola com farda de policia e distintivo oficial. Oferecemo-nos para repercutir, denunciar, gritar e articular uma reação pela cidade. Diego foi morto covardemente, depois de uma sessão de tortura. Foi alvejado várias vezes. O corpo foi conduzido por seu algoz até uma guarnição policial. Seus documentos foram destruídos e,sob a alegação de que ele era bandido, foi mandado como indigente ao hospital. Seu algoz foi blindado pela policia. Comerciante já conhecido por suas ações de vigilante e crimes confessos do qual foi liberado pela justiça. Mais uma vez um crime motivado pelo ódio racial. Diego era estudante, tem família, era surfista e lutou horas no hospital pela sua vida. Exigimos do governador que dê respostas a mais uma mãe que se debruça sobre o cadáver de seu filho adolescente e reflita sobre os sete pecados que têm sido cometidos pelo seu governo no trato com a segurança pública, quais sejam:
1- A Ira da policia nos bairros populares de maioria negra. A criminalização de populações inteiras submetidas a constrangimento, atos de violência, desrespeito e morte. Nada sugere uma suspensão dos atos arbitrários. Os fatos dão prova de que tudo vai piorar.
2- A soberba dos governantes que não dialogam com a população e apresentam planos mirabolantes para nossa segurança sem nos consultar. Como o programa Nacional de Segurança Publica com Cidadania, que para nós não passa de um Data Show que investe mais recursos em repressão do que em prevenção e tem tido o efeito de calar a boca de muita gente que poderia se pronunciar ante essa guerra que ceifa nossas vidas.
3- A avareza que impede muitas ONGs de se pronunciarem para não perder os vultosos recursos que se oferecem a cada cadáver que tomba de nosso lado da ponte. São os projetos para carentes e os intermináveis debates, seminários e encontros que se promovem em hotéis de luxo, onde se pratica...
4- ... a gula: conversam muito e vão para os coquetéis oferecidos com muito luxo e pompa deixando muita gente boa empanturrada e satisfeita, sentindo-se importante por que, de tempos em tempos, alguém vai para a televisão dizer que os negros estão fazendo algum progresso num governo democrático e popular, maquiando cinicamente os dados de nossa desgraça cotidiana
5- Luxúria: "Lúdico, Lúgubre e Luxurioso". Segundo o jornalista Dr. Fernando Conceição, estes são os três “eles” que nos etiquetam. Assim somos vistos pela elite tacanha e neocolonialista brasileira. Como lúdicos, divertidos, que podem elevar as divisas e arrecadações cantando, dançando e até celebrando o turismo étnico baiano. Somos todos coletivamente "Lúgubres", monstruosamente perigosos, insanamente bárbaros e nos matamos enquanto nos embriagamos nas favelas; e somos "Luxuriosos" porque sexualmente desregrados, com bundas oferecidas às fantasias de europeus ávidos por sexo.
6- A vaidade tem sido a tônica, o motor e a marca dessa segurança que em nada mudou nessa nova gestão. Mantém os mesmos quadros da polícia , muitos envolvidos com a tortura e a violência, citados em CPIs . Mais fortes em seus cargos de comando mandando praças e agentes para fazer o trabalho sujo, reproduzindo a lógica escravocrata de nos matarmos para ter "status" com o senhor. É um Narciso que se acha belo, mas com a mesma imagem de 16 anos atrás. É o que pensamos e vivemos nas vilas , favelas e presídios. Nada mudou.
7- Preguiça é o mal que tem afetado muita gente boa que lutou a nosso lado. Pessoas em quem apostamos nossas esperanças e agora se calam entre os senhores da Corte, assistindo ao extermínio de seu próprio povo; ou mesmo covardia, que não é exatamente um pecado capital cunhado no Vaticano, mas merece pena.
E, por fim, o silêncio que nos ronda já faz tempo, e é perigoso para um projeto do ponto de vista dos negros para o Brasil A Mãe de Diego pede justiça e nós nos apresentamos com o que temos. A alma de Diego se junta às almas de Edvandro Pereira, Clodoaldo Souza, Aurina, Djair, Ricardo e tantos outros tombados na guerra injusta.
Hoje (03 de maio),às 16 horas, nós o sepultaremos e seu corpo será coberto por lágrimas e esperança. É tudo que nos resta, por hora.

Hamilton Borges Walê
13 de maio de 2008

terça-feira, 30 de março de 2010

Operação Saneamento I e II e o Cortejo de defuntos do Governo do Estado da Bahia


Em 2007, diante do cadáver de Clodoaldo Souza, o Mc Blul, nós da Campanha Reaja exigimos do então empossado Governador Jaques Wagner uma ação mínima que evitasse mais mortes em nossos territórios racialmente segregados. Um mínimo de segurança pública responsiva e “para todos nós”, uma mudança na política de segurança pública secularmente direcionada para o controle e o extermínio dos negros e pobres do Estado.
Diante do Governador e do então Secretário de Segurança Pública, Paulo Bezerra, exigimos um projeto de segurança para o Estado que fosse participativa e alternativa a política de seletividade racial no sistema penal. Exigimos uma política que estancasse o sangue que jorra de nossas casas. O Governo ofereceu algumas reuniões, alguns seminários, disse que era cedo, disse para termos paciência e que ainda não tinha um orçamento e que internamente tinha que lutar contra setores conservadores da policia que estavam boicotando o Governo participativo, democrático e popular. Depois disso, nos apresentou uma política bélica de alta letalidade com os aplausos de setores da sociedade baiana que tem seus interesses resguardados pelo incremento na indústria da violência, que vem misturada com a indústria da comunicação.
Que crise mundial nada! O mercado da morte e do terror tem se aquecido com a estratégia de segurança que vem do gabinete do governo ou pelo menos de sua omissão.
Em 2005, brandíamos estarrecidos os dados de 635 mortes em nove meses em Salvador e região metropolitana. Falávamos indignados do Nazi-fascismo Carlista e, junto a nós, acampados nas escadarias da SSP, muita gente despertava da letargia política e lutava pela vida. Mas… O que dizer da atual conjuntura? Vejamos a notícia que segue:
“Em 2008, morreram pelo menos 2.237 pessoas assassinadas em Salvador e região metropolitana. O dado é subnotificado pois o Centro de Documentação e Estatística Policial, da Secretaria da Segurança Pública (Cedep/SSP), ainda não disponibilizou as estatísticas fechadas do ano. O cálculo do número de vítimas resulta das informações oficiais disponíveis e por pesquisa de A TARDE no Livro de Liberação de Cadáver do Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues.”(Fonte: Jornal A TARDE)
Podíamos nos calar, como muitos tem feito faz algum tempo. Mas, diante do silêncio criminoso que nos submete a certa tática política incapaz de acreditar numa via independente e comunitária para mudar o quadro, um silencio que se acovarda diante de nossa tragédia, que não se movimenta nem sabendo que todos estamos “na Mira”, que nos convida ao banquete com o inimigo em que o prato principal são os nossos corpos congelados nas gavetas do IML. Resolvemos continuar combatendo, sabendo precisamente quem está conosco ou quem se perdeu por medo, por covardia ou pela sedução da corte.
Preferimos para além de reagir, enfrentar os arautos dessa tragédia humanitária que nos submete.
Cesar Nunes se abriu e nos foi útil. Há muito o Governo abandonou uma idéia intersetorial de segurança. O que foi instituído desde o Palácio de Ondina foi a política repressora de controle da pobreza, alegando-se, cinicamente, combate ao tráfico e ao crime organizado. Com essa política triplicou-se o temor pelas ruas de Salvador e o clima de guerra aumentou sua intensidade justificando uma atitude bélica e irresponsável do Estado que executou centenas de jovens negros nos bairros pobres sob a alegação de “auto de resistência a prisão”.
Basta darmos uma olhada nos processos do Grupo de Controle da Atividade Policial do Ministério Publico da Bahia(GACEP),concernentes as batidas policias em bairros pobres de maioria negra durante atividade policial e veremos os laudos. Tiros pelas costas, pelos vidros traseiros dos carros, na cabeça , no tórax, de cima para baixo, a queima-roupa, o que revela se não outra, mas a intenção de matar dos agentes do Estado, e ainda a subnotificação dos dadosrecentemente apresentados pela SSP de auto de resistência, que remete a 105 mortos em 2008(fonte: Jornal A tarde) . Aí entra a imprensa com todo seu poder de espetáculo e imagem de suplício de pessoas descartadas e submetidas a um controle penal racista e capitalista que tem a mídia a seu serviço.
Nunca foi novidade que a mídia munida de seus instrumentos fantásticos que fabricam “verdades” a serviço do capital neocolonial e seus gerentes tenha no controle penal um instrumento de subalternização dos pobres e oprimidos.
Nossa estranheza é outra!!! A proliferação de programas obesos de qualidade jornalística duvidosa que aumentam sua audiência exibindo cadáveres abatidos, cabeças abertas, corpos estourados por balas de grosso calibre. Incursões policiais, às vezes transmitidas em tempo real; exibição de prisioneiros provisórios que não foram julgados, que são escarnecidos por repórteres tolos; personagens bufões e com a autorização de Delegados de Policia que se comportam como celebridades midiáticas que violam cotidianamente o Código Penal e a Constituição, como dito por Nilo Batista:
“…quem duvida que os infelizes foragidos, cujos crimes são requintadamente exibidos no programa Linha Direta estão sendo julgados sem defesa naquele momento e não pelo júri que refendara o veredicto de Douglas Meireles”.
Sem respeito ou presunção de inocência, direito de não produzir provas contra si próprio, direito a preservar sua dignidade, esses programas como os que estão a frente os apresentadores Bocão, Zebim e mais recentemente o programa “Na mira”, apresentado por Uziel Bueno, se autorgam a autoridade punitiva. “ Uma instância de serviço público que tende a corrigir as insuficiências do sistema penal(…)a fazer a justiça funcionar como deveria”(idem).
Parece que esses programas são produzidos desde dentro da Secretaria de Segurança Pública, sob a coordenação de Cesar Nunes, que já declarou ser secretário de polícias e não de segurança. Ele incentiva o combate, o confronto e revela o fracasso desse modelo de Estado policial que tem utilizado o expediente nazista de guerra midiática com um pelotão de delegados e agentes todos os dias na hora do almoço. Constrange pessoas, julga e mostra os corpos de quem foi executado dentro do que Cezar Nunes chamou de Operacao Saneamento I e II, num tom tipicamente Lombrosiano de etiquetamento de quem vai ser “caçado ” pelo Secretário de Segurança Pública do Estado da Bahia(Ler Felipe Freitas e Lio N’zumbi).
Em quatro anos de permanente debate, denúncia e pressão contra a política racista e fascista de segurança pública e diante de mais de 2.237 cadáveres gerados pela incapacidade do governo de garantir nossa segurança, nós, representantes da Campanha Reaja e da Associação de Familiares e Amigos de Presos e Presas do Estado da Bahia (ASFAP), temos autoridade moral e política para dizer que não profetizamos em 2007, em audiência com o Governador Jaques Wagner, a mórbida marca alcançada por ele e seus secretários.
Apresentamos, naquela ocasião, alternativas de política de segurança pública com diálogo e participação que foi recusada. Apresentamos alternativa de investimento social nos territórios abandonados, através da cultura, educação e lazer: foi recusada. Apresentamos a alternativa de uma política de segurança intersetorial que também foi recusada.
Em lugar disso, o governo optou por endurecer o jogo. Reforçar a perspectiva de letalidade e do terror com suas operações de guerra, levando para o ralo da governadoria mais de 2.237 vidas, entre estes policiais, crianças, mulheres e jovens submetidos a marginalização histórica. Todos negros. Alguns que cometeram crimes, o que parece justificar a máquina de matar do governo,que fala em tráfico de drogas como “responsável”. Mas que tráfico e que traficante ? Está sendo abatido o tráfico do varejo, feito por preto pobre? O tráfico de alto escalão, tráfico internacional com seu escritório nos bairros nobres de Salvador não é nem citado e ainda oferece carona de lancha aos administradores do Estado.
Em 2007 fizemos várias exigências ao governador do Estado da Bahia para que parasse a matança. Nós não fomos ouvidos: a matança triplicou contra nossa gente. Em 2009 iremos continuar lutando pela vida nacionalmente integrados às vítimas desse Estado que não se permitem fazer política de cócoras.

Hamilton Borges Walê,
Associação de Familiares e Amigos de Presos e Presas da Bahia- ASFAP
Campanha Reaja

quinta-feira, 25 de março de 2010

Continuamos Entrincheirados: 3 anos da morte do Negro Blul (Clodoaldo Souza)

Salve Negro Blul, meu parceiro.
Suave, nego?
Estive nesses dias em São Paulo, com o Akins Kintê. Parceiro firmeza de caminhadas pelas quebradas de lá. Lá,Negro Blul, é o berço do Rap nacional. Você amava o Rap ,Blul, por isso minha mensagem nesse ano vai margeando alguns versos nascidos nas ruas. Eu amo São Paulo, pelo seu mistério e seu frio permanente, pelo seu porte e pela gente que ali vive. A gente preta, a gente que faz da poesia uma coisa simples e maloqueira, com gosto de brisa, e ainda faz barricada. Mesmo ante a cavalgada fascista que ronda as cidades, eu amo a poesia e amo São Paulo. Lembra desses versos Blul, do Mano Brown ?
"porque o guerreiro de fé nunca gela,Não agrada o injusto, e não amarela,O rei dos reis, foi traído, e sangrou nessa terra,Mas morrer como um homem é o prêmio da guerra, Mas óh, Conforme for, se precisar, afogar no próprio sangue, assim será, Nosso espírito é imortal, sangue do meu sangue, Entre o corte da espada e o perfume da rosa, Sem menção honrosa, sem massagem."A vida é loka nêgo, E nela eu tô de passagem.”
É como um acorde leve de Sérgio Vaz, uma explosão rítmica de Gog, é poesia enquanto armadura, é balsamo nas madrugadas sem vinho.
Suave, Blul.
É a melodia de Akins Kintê que eu mastigo pela tela de um computador que me encara:
“o que fizemos por serra da barrigao dobro façamos por nossa comunidadese não rola relaxa marcha e sigafaçamos de nosso coraçãoum quilombo uma naçãouma serra da barriga”
Perdoe Blul,
Passei batido pela data em que te abateram na Estrada Velha do Aeroporto. Minha missão é simples: não deixar que esqueçam seu martírio. 1º de março de 2007, eu marco sempre o tombo de seu corpo sobre o asfalto ensangüentado de tanto corpo preto vitima do extermínio.
Por aqui nenhum avanço. Parece que seu caso tá arquivado. Depois de você uma multidão de pretos mergulharam pelo barro dos cemitérios da cidade: tiros pelas costas, pelas nucas,sem chance de defesa, abatidos por ordens superiores de mais gente de olhos azuis. Gatilhos puxados pelos dedos do Estado, comunidade em estado de guerra, ativistas versando sobre desgraça em coquetéis da hora , números e “um troco” captado pra fazer relatório. Tudo antigo, Blul, e o ódio circulando em nossas veias.
Nas masmorras, entre grades e as escabioses, tuberculoses e abandono, prisioneiros somam em suas marcas o estigma de explodir essa cidade, e morrem encarcerados sem nenhum protesto. São os monstros eleitos pelo “cabeça branca” que não mudou em nada a gestão de uma Bahia racista. Cabeça branca...nossa sina!
Conte os pretos do primeiro escalão desse governo de poucos e diga-me quem se equivoca nessa história. Conte os corpos tombados pela Operação Saneamento I e II. Faça a conta!
Os massacres se sucedem Blul, em Cana Brava, em Vitória da Conquista, em Pau Miúdo, Pero Vaz. A polícia tem licença pra matar e o silêncio se acelera em ano eleitoral.
“ Ação se não revolução vira moda”
Como fala meu parceiro e irmão GOG que me orgulha pela conduta. Eu afirmo também: compromisso, se não lutar vira negócio; respeito, se não militância vira farra;memória, se não a desgraça se repete.
E eu não preciso mais de mártir, Blul, já me basta escrever a cada ano em sua lápide e esperar que a cura ilumine essa cidade.
Paz, justiça e liberdade.
Suave, nego
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