Este espaço, quilombo eletrônico é uma Arma.
Uma berro, aos berros para chamar a atenção de nossa inércia cotidiana.
Aqui , desfilaremos textos, sons e imagens que nos façam remexer o espírito.
Aqui não é palco de luta. Palco de luta são as ruas.
Mas aqui poderemos dar corda às nossas frustrações. Poderemos falar, cortar esse sufoco que nos arrebenta.
Na boa Dom?
Estamos tão controlados e controladas,
Que essa matança em massa ai fora não nos movimenta pra nada.
Abrem-se cadeias na Bahia e todo mundo em silencio fazendo o relatório do financiamento.
Morrem meninos e meninas num padrão vil de genocídio e a gente faz seminário fingindo que não é com a gente.
De boa.
Aqui é pra se falar na lata!
Aos berros!
O que se quer....

terça-feira, 27 de abril de 2010

ARMAGEDOM


É isso. O Curuzu é uma favela abandonada pelo governo baiano preocupado em batizar tudo com o nome de certo deputado morto, o filho de um tal senador fascista.
Curuzu de becos estreitos que ligam à ruas de baixo à Santa Mônica e aos frades. O Curuzu fica no bairro mais negro do Brasil. O Bairro da Liberdade. Não a liberdade de São Paulo, dos japoneses que operam sua própria economia e gerenciam seus próprios bancos. Ali até atendente de banco tem olho azul.
No Curuzu falta asfalto pelos lados da avenida cariri e o esgoto da rua Nadir de Jesus ainda esta a céu aberto, a escola é capenga, o lixo anda espalhado. Ali, onde fica o primeiro bloco afro do Brasil. Onde eu nasci.
O Curuzu é o meu jardim do Éden, onde meu umbigo fertiliza a terra. Onde a ginga de um preto rebrilha uma força indizível, uma mágica estupenda sob o sol.
Eu nasci de parto natural, minha avó me aparou e cortou rapidamente o cordão umbilical que estava enlaçado em meu pescoço.
Diz minha velha tia, Dona Antonieta, que eu chorei na barriga, por isso saberei o dia de minha morte.
Por precaução, meu umbigo foi enterrado num pé de mangueira lá no meu quintal, onde hoje fica a oficina, ao pé da ladeira, na baixada mesmo.
Lembro dos candomblés de Dona Roxa que nos oferecia mungunzá quente e história de gente morta, visagens andavam pela roça do maluco assombrando o povo.
Meu amigo Gabriel disse-me certa vez, que assombração mesmo era quando em noites de lua-cheia o maluco virava lobisomem e vagava pela mata, perto da ladeira do cavalo morto.
Lembro do Exu da discoteca de Macário que nos seguia voando dia de sexta feira se não oferecêssemos uma garrafa de cachaça ou uma vela preta...Curuzú era encantado.
Fiquei muitos anos sem andar no Curuzu, depois de muitas confusões pelos becos da rua progressista; de pular o muro do Colégio Celina Pinho para roubar merenda, pão, presunto e Nescau – eu finado Carroça e finado Hipólito que hoje é diácono da Assembléia de Deus. Corríamos de seu Anacleto que nos pegava pela orelha ao mando de Minha avó que gritava:

“Deus lhe dê força nos braços Seu Flô, antes você bater do que a policia”

Éramos uma família extensa, todo mundo cuidava de todo mundo.
Fiquei anos sem andar no meu bairro, rodei por Salvador, fui descobrir minha cidade em detalhes, muitos distantes dos dramas lá da rua, fui vendo, os olhos caídos das mulheres da montanha, antigo bordel que rivalizava com as prostituas do pelourinho, fui satisfazer-me com as cantigas dos blocos dos índios na ladeira da Praça, meu preferido era o Comanche do Pelô com suas sensuais travestis, entre elas a linda Carlete que tinha sido sargento da policia e ali ostentava fartos seios oferecidos juntos a uma rica feijoada para quem entrasse nos seu castelo como convidado.
Passava pelo terreiro e dava a benção ao mestre Caiçara com sua bengala talhada e uma vida entregue a capoeira e a briga de rua.
Ia para a benção de São Francisco ver aqueles pretos elegantes com pastas na mão distribuindo panfletos. Eu já circulava pela boemia que ia cedendo espaço para outros tempos. Novos tempos.
Deixei com minha Avó a responsabilidade com os destinos de meus antigos parceiros.
Vovó faz responsos para Santo Antonio, reza de ventre e espinhelas caídas.
Hoje no Curuzu o que vejo é a dor das mães que doaram suas vidas pelos filhos, como dona Marileusa que em cinco anos enterrou três filhos. Beto foi morto pela policia na Pero Vaz, antigo Corta Braço, não tinha culpa nenhuma o pobre Beto. Os rapazes da Rua do Céu assaltaram a loja de roupas de seu Anastácio, deram um cassete no velho que tinha um filho na policia do Exercito e desceram em fuga para o Pero Vaz. Beto fumava um baseado no Beco das Gordinhas, a policia chegou atirando, um tiro atingiu em cheio o coração do rapaz, ninguém foi punido.
No enterro, Dona Marileusa não derramou uma lagrima sequer, ali começará seu calvário.

“ Se é a vontade de deus, eu me conformo”

E se conformou no enterro de Ari, de César e de Marcos. Todos envolvidos com o jogo do bicho, foram fuzilados em pleno dia na porta da casa de Dona Marileusa que em silencio os acompanhou até uma cova sinistra nas Quintas dos Lázaros. Cemitério bem servido de corpos pretos mortos no Curuzu.
Hoje eu vejo a tristeza dos jovens entre os de minha geração, bêbados, drogados, largados, esquecidos, sambando como almas penadas o mais novo sucesso da Bahia. Alguma letra fácil sobre aquela melodia bumbum- fálica que nada representa a realidade que atravessa os becos estreitos de onde vi, por muitos anos, parceiros tombarem mortos por causas fúteis como a perda de uma namorada ou uma aposta não cumprida sobre o resultado do jogo entre Bahia e o Vitória. O valor da vida? Uma garrafa de refrigerante quase sempre mal conservada na barraquinha do Chico, aquele que manca exageradamente por causa de uma bala perdida que atingiu sua perna num tiroteio na Rua São João. Para variar, Chico não tinha nada que ver com o peixe.
Capote e Cinzenano trocaram tiros no dia da copa de 1986. O Brasil Perdeu para Argentina, Cinzenano que tinha organizado uma farra com cerveja e feijoada, maconha e tira gosto para comemorar a vitória do Brasil ficou furioso e saiu atirando para o alto, um dos disparos quase atinge Adelaide, amante de Capote, linda negra de corpo de sereia, um linda mulher de olhos grandes e lábios macios com um batom vermelho comprado numa revista de cosméticos e roupas sensuais, uma linda saia jeans apertada atiçando a gula de quem se atrevesse a olha-la.

“uma freteira discarada, mulé de ladrão que gosta de comê home dosotro.”

(...) Dizia Alzira do Feijão, recalcando seu amor por Capote , seu antigo amante.

“ Ele me tirou de casa, é meu devedor”

Dizia quando tomava uma pingas no bar de Risadinha, Alzira tinha seus encantos, mas a decepção amorosa com Capote a tinha deixado cada vez mais largada.

Adelaide era feita de santo em Dona Edelzuita de Oxossi, uma exuberante mulher, dava seus dotes de amante ao malandro Capote, que em troca a enchia de presentes e mimos. Perfumes, roupas, sandália, correntes de micheline, anéis, brincos tudo banhado a ouro. Adelaide brilhava, reluzia, punha as mais belas saias para fazer rodas no candomblé todo dia oito de dezembro quando dava comida para Oxum.

Capote era o comandante da gestão do Curuzu, o cão chupando manga. Tinha uma beleza natural de quem comanda, com seu porte de leão, sua voz que ecoava nas peladas de sábado, o baba. Era um herói antropológico, querido por todos.
Desfilava com seus relógios, pulseiras de prata, e armas de grosso calibre, ele e sua turma. Brasinha, Negreiro, Professor e Miguel pareciam cavaleiros medievais em constante cruzada.
Quando traziam os despojos da guerra era uma festa na comunidade. Sobretudo para os meninos que tomavam muito refrigerante de graça.

No exato instante que Cinzenano disparou os tiros para o ar, Capote estava sentado na sacada da casa de seu Valzinho, com seu olhar de lince via tudo. Uma questão de segurança, de sobrevivência. Percebeu quando Adelaide assustada, quase desmaia pensando que ia ser atingida.

Capote foi tirar o desaforo.

“ Ô fulano, Fila da puta, cê quase mata minha mulher”

Gritou do alto de sua guarita, com a mão num revolver calibre trinta e oito, cabo de madrepérola, preto como betume, (a mesma sonoridade do riso de satanás cuspindo fogo). Engatilhou, parou alguns segundos, esperando as desculpas do parceiro de goles e golpes .... silêncio, a desculpa não veio... Pelo contrario. Cinzenano olhou em fúria, tragou a ponta de um cigarro sem filtro, puxou uma pistola sete meia cinco do bolso da blusa de frio em pleno sol de Salvador e atirou

“ Vai se fudê porra”

E corria como uma pantera na mata, ali era a selva, o habitat de Cinzenano e ele estava como queria, em combate, pronto para devorar a presa, conquistar um território, uivar como vencedor da peleja.

Capote, quase sentia a bala roçar sua orelha, pulou da sacada como um anjo apocalíptico em seu êxtase armagedonico, parecia o fim de Cinzenano, a besta-fera que o sétimo anjo iria sujeitar. Tiros, muitos tiros.

A multidão corria assustada, os curiosos paravam para ver. Uma das balas atingiu a perna de Chico-da-Barraca que sangrava e chorava menos por dor, que por medo, um medo desgraçado

“Um frouxo esse rapaz, ponto puta, que fica de chiada”

(...) falava seu Carlos Telles, velho boêmio, dono do serviço de alto falantes. Tirado a valentão. Um tocador de bandolim de valor. Meu velho pai.
O tiroteio reiniciou, a esta altura o jogo da copa era secundário, Chico foi posto para dentro da venda de Risadinha. Os desafetos cessaram fogo. Capote falou manso a Cinzenano.
“ ta vendo ai vacilão, se é a vera eu te mato”

Abraçou o amigo

“Fica atirando a toa, assustando minha nega, e se você mata ela? Pague uma cerveja ai vá”

Falava ofegante guardando as duas armas na blusa. Cinzenano pegou uma cerveja no bar e ofereceu ao amigo matador

“Porra cê quase me levou véi”

Falou limpando o sangue de Chico do chão com uma talagada de cerveja oferecida ao santo como de praxe. No caso dele era boiadeiro seu protetor.
Chico foi esquecido, subiu à pé a ladeira do Curuzu, com poucos amigos, até o posto de saúde para tomar seu socorro e seu antibiótico.
A bela Adelaide de sua janela dava umas piscadas descaradas e mostrava a língua para Cizenano que tentava disfarçar a traição com tapas nas costas de Capote. Que só pensava agora em se preparar par ir ao ensaio do Ilê. Mesmo com a derrota do Brasil ia ter as cantigas de Buziga alegrando as cabeças.
O Brasil foi desclassificado, repetiram-se os tiros pela madrugada, Chico ficou definitivamente manco. Ninguém sabe que revolver o atingiu, e se soubesse não falariam. Lei é lei .
Anos mais tarde encontrei Cinzenano. Bêbado, magro, todo sujo, dançando essas musicas da moda em frente a quitanda do Chico.
Perguntei por Capote. Ele parou, fixou-me, procurou um revolver imaginário, talvez achando que aquilo levantaria a moral em minha presença. Com uma lata de crack na mão e os olhos soltos na passado ele me respondeu

“ Ta morto, foi pra Califórnia, se fudeu. O irmão de Adelaide matou ele na crocodilagem, deu uma facada nas costas”

Coçando muito o corpo e a cabeça, Cizenano mudou de assunto

“ Me dê um real ai Almir “

Eu fingi que não escutei, sai batido, trôpego, melancólico.

Capote não tem nome em aeroporto, provavelmente nem em Lapide

Hamilton Borges Walê

Um comentário:

  1. uau Hamilton, vc escreve muito bem! sgurei uma câmera pra te filmar na UFMG essa semana e fiquei sua fã. abraço!

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